sábado, 7 de novembro de 2015

VIDA HUMANA - CONSTRUIR OU RECONSTRUÍ-LA?



Antes de exercer a Psicanálise, dificilmente teria a percepção da abordagem que fundamentará este artigo. Mas, a escuta recorrente de relatos de diversos pacientes foi revelando que o ser humano, desde a temporada intra uterina, começa a receber estímulos constitutivos de seu psiquismo - saudáveis ou comprometedores das bases que deveriam dar suporte ao desenvolvimento do novo ser.

Do universo de pacientes maiores de sessenta anos, destaco relatos de determinado paciente que costumava ouvir, repetidamente, ainda na adolescência, de um parente próximo que não teria capacidade sequer de se autossustentar. Esse simulacro de profecia concretizou-se. Ao longo de sua vida, o paciente jamais compreendeu porque fora infeliz como marido, frustrado como pai e incapaz de aceitar os vários convites para liderar equipes de trabalho. Desse parente, que tanto o depreciava, ele assimilou alguns vícios, certas doenças e até o jeito inseguro de trabalhar. "Foi muito tempo perdido na minha vida", lamenta-se.

As profecias sinistras agem em forma de crença e afetam suas vítimas independentemente da idade. Entre pacientes jovens, os prejuízos emocionais equiparam-se aos danos causados aos do segmento mais maduro. Se esses sofrimentos provocados pelas relações desvalorizantes  não forem competentemente analisados e tratados, no futuro, os ex-jovens contarão a mesma história vivida pelos mais velhos. Lembro-me de um caso em que as ruínas psíquicas da paciente originaram-se de equívocos de alguns cuidadores, que exaltavam as pessoas que estudavam muito e desqualificavam as que sabiam menos. 

Hoje, aquelas "verdades" estão emergindo e ditando os degraus de inferioridade em que a referida paciente se encontra. E qual a repercussão de tudo isso nos relacionamentos afetivos dessa paciente? É a predominância do critério intelectual. Se a discrepância for significativa, a barreira que se ergue termina por exigir altas doses de transpiração para ser superada. Em geral, os adultos envolvidos nessas corrosões emocionais estão simplesmente reproduzindo modelos mentais que herdaram e que foram considerados como a forma correta de participar da construção de uma nova vida humana. Não deixam de ser responsáveis por todos os danos perpetrados contra os pequenos, mas isso não justifica a carga de culpa tardia que eventualmente assumem. Não há culpa quando não existe a intenção de prejudicar (isso na Psicanálise)

Aqueles que foram marcados com tais experiências, e ainda mantêm as tatuagens da baixa autoestima, tendem a seguir uma vida aparentemente normal - estudam, trabalham, casam-se, têm filhos etc - mas todo esforço almejando a autorrealização, aquela sensação de liberdade, bem-estar, sucesso, felicidade etc, parece nos empurrar para trás. A pessoa tem uma imagem negativa de si, ressente-se por uma autoconfiança nivelada por baixo, duvida dos próprios méritos, considera-se inadequada socialmente e, ainda, tende a questionar as manifestações de amor que recebe. 

Tenho acompanhado casos de pessoas que já tentaram até mais de três casamentos e em nenhum enxergou motivos para consolidar algum tipo de vínculo. Em outras situações, de natureza equivalente, o paciente não reconhece a importância de uma família, bons salários, status social e no ambiente corporativo - "para que tanto esforço se, no final, nada é significativo", desabafam.

Segundo Lacan, o inconsciente, a grande bússola do ser humano, é formado antes mesmo do nosso nascimento. Antes de nascermos, já nos dão um nome, um sexo, um time de futebol, uma profissão; nascemos em uma determinada classe social com seus valores e preconceitos e num país com sua cultura e sua língua. Podemos acrescentar expectativas carregadas de amor, rejeições e, como já dissemos, formas inadequadas  de pavimentarmos o chão que acolherá aquele que está chegando.

Os conteúdos do parágrafo anterior, principalmente, indicam que a construção do alicerce, base de sustentação do interminável processo de edificação da vida humana, é de inteira e exclusiva responsabilidade dos pais ou cuidadores da criança, que mais tarde, no tempo devido, associa-se aos adultos para iniciar a gestão pessoal de sua vida. É agora que surge uma questão crucial: que material foi utilizado para a estruturação do alicerce? Esse alicerce suportará o peso de uma construção que nunca terminará? Se não, como haverá construção? E, sem construção, que lugar ocupará essa pessoa? O que fará de sua vida? Que vida?! É como construir uma casa sobre a areia.

É nas circunstâncias, descritas acima, que a pessoa patina desesperada querendo avançar, rema contra uma corrente poderosa que nos arremessa de volta e sente que em nada encontra razão para viver. Por isso, é fácil compreendermos relatos de pacientes de que desejariam ter morrido no lugar de seus animais de estimação. Você está imaginando qual será o desfecho deste artigo? É simples. Se você acreditar que pessoas incluídas em contextos tão adversos terão que sofrer permanentemente, poderá estar certo. Mas, se apostar que elas poderão superar todas as vicissitudes, também acertará.


Tudo dependerá das atitudes tomadas por essas pessoas. Através de um consistente processo psicoterápico, o paciente desenvolverá um crescimento mental que lhe permitirá, primeiro, compreender a natureza do material com que o alicerce de sua vida foi constituído. Em seguida, ele sentirá que precisa realizar uma profunda reforma nesse alicerce. Só então, haverá o início tardio da construção de sua jornada - "antes tarde do que nunca". 

A habilidosa e inteligente execução dessas etapas decretará o sagrado direito de todos à felicidade, ao poder criativo e transformador inerente a todo ser humano e, por fim, ao gozo responsável de todas as maravilhas que a vida potencialmente nos proporciona. Retornando ao título deste artigo, ousamos afirmar que jamais haverá RECONSTRUÇÃO onde não houve CONSTRUÇÃO, e sim um amontado movediço do que deveria ter sido o alicerce de uma vida.

Conte sempre conosco.

Ramos de Oliveira
Psicanalista Clínico
Professor de Psicanálise e Palestrante


Email: ramos.talentos@gmail.com
Av. Santos Dumont, 847 - Sala 303 – Aldeota
Fortaleza - Ceará - Brasil